Religiosidade na Braga contemporânea: O Senhor dos Passos, os Santos e as Alminhas do Purgatório

Antropologia de fazer por casa…

«Na região de que estamos a tratar pensa-se que a maior parte das pessoas morre com culpas – pecados, más ações, dívidas – tendo por esse motivo de passar um maior ou menor tempo período de tempo no Purgatório, conforme o número das suas culpas.»

João Pina Cabral, 1985, p. 72

Jovem, dinâmica, vibrante e cosmopolita, ao longo das últimas décadas Braga foi expandindo o perímetro urbano, com a vinda de novos residentes e adquirindo novos atributos, que combinam o progresso e a modernidade, da expansão do ensino universitário ao forte empreendedorismo do comércio e das novas indústrias, com a preservação de tradições que continuam a ser uma forte marca identitária da cidade dos arcebispos. O barroco das Igrejas e dos Santuários, o folclore, as festas, as romarias e as procissões, do S. João à solenidade da Semana Santa, convivem, na mesma agenda religiosa e cultural, cada vez mais direcionada para o turismo que atrai milhares de visitantes, com os novos ritmos, cores e sons, da massificação da Noite Branca ou da sofisticação tecnológica e criativa das artes digitais. Sem contradição, Braga são duas e a mesma única cidade – a do Bom Jesus do Monte, classificado como Património Mundial (UNESCO, 2019), que representa na arquitetura do passado a forte marca da religiosidade católica, e, a Cidade Criativa (UNESCO, 2017) do futuro, que desponta internacionalmente no domínio das Media Arts.

Quando o antropólogo João Pina Cabral escreveu o texto «Os Cultos da Morte no Noroeste de Portugal», numa obra conjunta com Rui G. Feijó e Hermínio Martins, em «A Morte no Portugal Contemporâneo» (Editorial Querco, 1985), Braga, no coração do Minho, dava continuidade, sem grande sobressalto, às crenças e devoções populares do catolicismo, nomeadamente o culto das Almas do Purgatório. A cidade, entretanto, mudou… mas, as “alminhas”, absorvidas pela malha urbana em expansão, continuam lá, resistindo na perpetuação de um tempo que julgaríamos prestes a findar. As flores frescas e a chama das velas acesas, mesmo em dias chuvosos e sombrios dos longos invernos do Norte, mostram que o culto das Almas do Purgatório, hoje porventura mais discreto na exteriorização da fé, continua vivo…

«(…) Quando estas almas vão para o Céu estão gratas àqueles que por elas rezaram e pedem aos Santos para interceder junto de Deus pela salvação dos fiéis. É esta a base teológica e popular do culto das Almas do Purgatório.» Pina Cabral, p. 73.

Fora das mais das 80 Igrejas de Braga, e dos dias santos e festivos, várias são as manifestações da religiosidade popular. Nas lojas do comércio tradicional é frequente encontrarmos o nicho do santo patrono – quase sempre uma estatueta de Santo António. Nas traseiras do antigo Hospital de São Marcos, todos os dias, e em especial às quintas-feiras, acorrem à Capela de São Bentinho devotos que ali rezam pela intercessão do Santo na resolução das causas difíceis, acendem velas ou deixam moedas na caixa de esmolas, em ex-voto ou oferta votiva. E encontramos ainda as imagens do Calvário – oito quadros representativos dos “passos” de Cristo no caminho da crucificação (Via Sacra), exibidos na quadra da Quaresma, que neste tempo de pandemia têm estado de portas abertas para “conforto espiritual dos fiéis”, como me contou o cónego João Paulo Coelho Alves do Cabido Metropolitano e Primacial da Arquidiocese de Braga, adornados com as flores da viva devoção popular…

De maior interesse neste breve complemento fotográfico ao trabalho de João Pina Cabral são as “alminhas”, localizadas em vários pontos da cidade, junto de estradas e cruzamentos que noutros tempos marcavam a fronteira entre o centro urbano e a periferia – que é também uma metáfora para a situação de transitoriedade entre este mundo e o outro mundo dos mortos, e entre o sofrimento dos vivos e a derradeira esperança na vida eterna.

«As Almas do Purgatório estão, pois, numa situação liminar entre a vida e a morte, assumindo, portanto, um carácter sagrado e assustador. Devido à sua transitoriedade são usadas como medianeiras entre a vida terrena e a extraterrena, entre a impotência e cegueira deste mundo decadente e o poder e omnisciência do mundo futuro.» 

Pina Cabral, p. 74

Fotografias. As imagens da “alminhas” abaixo retratam motivos marianos dedicados a Nossa Senhora do Carmo.

Figura 1 – Alminhas da Igreja de Senhora-a-Branca (traseiras), com retábulo em azulejo, entre a Rua de São Victor e a Rua da Restauração

Figura 2 – Alminhas do Largo Monte de Arcos, com retábulo em azulejo, entre as ruas de Monte de Arcos, São Domingos e Conselheiro Bento Miguel, próximo do cemitério

Figura 3 – Alminhas da Capelo de Senhor das Injúrias, esculpida em pilar de granito, com retábulo em madeira, na Rua das Palhotas (São Vicente).

Figura 4 – Capela de São Bentinho.

Figura 5 – Nicho de Santo António patrono da frutaria do Sr. Francisco, Rua do Carmo.

Figura 6 – “Calvários” da Rua Dom Paio Mendes (Sé), Porta Nova e Casa dos Coimbras.

Este artigo foi escrito por Manuel António Cepas Rebelo, aluno finalista da Licenciatura em Antropologia da Universidade de Coimbra e Técnico Bancário no Banco Invest.

A ideia deste breve ensaio fotográfico surgiu na sequência da análise e discussão do texto de João Pina Cabral, abordado nas aulas práticas de Antropologia do Corpo (2020/21), sob a decência do Professor Dr. Jorge Varanda.

---

---