Conferência Antropóloga Nastassja Martin – Metodologias do Sonho
No dia 19 de setembro de 2024, a convite da Culturgest em parceria com a embaixada Francesa em Portugal, a antropóloga Nastassja Martin participou numa conferência sobre o seu livro Acreditar nas Feras e sobre o seu novo filme em parceria com o cineasta Mike Magidson, Tvaïan, onde retrata o modo de vida Eveno.
A conferência que começou à hora marcada, nem mais um segundo, e que tinha sala cheia e uma enorme fila assistir fora do auditório, teve uma grande participação com perguntas e intervenção ativa do público.
De entre os vários temas abordados, com moderação da Prof. Cristina Ribeiro (departamento de História da Universidade NOVA de Lisboa e investigadora integrada do CHAM – Centro de Humanidades), destaco alguns que me parecem de grande relevância:
1º) A questão mais pertinente, e debatida, foi a diferença entre um caderno de campo cientifico com uma escrita regulada e hermética, onde se está a desenvolver uma pesquisa centrada, com um histórico, com referências, com determinadas lentes antropológicas.
E um “diário de campo”, onde existem notas poéticas, desenhos, formas de ver o mundo subjetivas, preconceitos, intimidades. Relações para lá da pesquisa e da ciência. Onde se mostra a luta entra a mulher e a cientista. Entre a antropóloga e a poeta. Debatendo-se a reação da comunidade académica a este tipo de publicações pouco comuns.
2º) Uma outra questão interessante, é a forma como as populações participam e mudam as dinâmicas da pesquisa antropológica. Nastassja Martin, na sua primeira experiência de campo, para o trabalho de doutoramento com Descola, parte para o Alasca para trabalhar o animismo entre aquelas populações e como ele se mostrava nas práticas modernas. Mas as pessoas, queriam era falar dos seus problemas, nomeadamente da destruição ecológica que os afetava pela exploração de petróleo e de gás, o que condicionou e alterou o objeto de pesquisa de Nastassja.
3º) Uma última parte da conferência centrou-se na questão do sonho, e como para as populações Evenas, ele é mais que um ato simples e incontrolável, mas tornou-se um ato político e metodológico, que exige um conjunto de princípios e de metodologias para existirem. Sonhar é diferente de sonhar bem.
Partindo do sonho, a conversa foi para a linguística e capacidade de produção de discurso. Onde Nastassja, apresentou uma forma diferente de olhar o mundo, como Eveno, onde o passado e o presente, o sonho e a realidade, o hoje e o à “30 anos” se intercalam no mesmo discurso, até para resolver problemas prementes.
Gerou-se na sala entre o sonho político e poético, um debate entre as formas de ver de Latour, Descola e Lévi-Strauss, onde entre a literatura (diferente de ficção) e o sonho, chegou-se ao “analogismo antropológico”.
A conferência termina com o visionamento do filme Tvaïan:
“Em 1989, após a queda da União Soviética, Daria, a chefe do clã Even, decide deixar a sua aldeia e voltar a viver na floresta com os seus cinco filhos. Viajando pelas florestas profundas de Kamchatka, Mike Magidson e Nastassja Martin vão ao seu encontro. Através de uma experiência cinematográfica íntima da sua vida quotidiana, revelam o destino extraordinário desta família que encontrou uma resposta para o colapso de um sistema político, reavivando as suas ligações animistas com os seres e elementos naturais”
“O filme conta a história da luta de uma mulher para dar à sua família uma vida melhor e mais estável, apresentando-lhes o mundo que os seus antepassados foram obrigados a abandonar. Uma viagem íntima ao coração de uma das florestas mais remotas do planeta. Perante o atual momento histórico, em que a relação da humanidade com o ambiente entrou em crise profunda, Tvaïan convida a contemplar as diferentes possibilidades de reconciliação com a natureza”
(Sinopse oficial, 2024)
Um bom filme, com uma qualidade cinematográfica, tanto ao nível de imagem, como som, completamente fora de série, demonstrando como o tradicional se alia ao novo, com a tecnologia e a globalização
Para demonstrar isto, destaco três momentos particulares:
1º) Uma mais geral, são os momentos de conversa entre Daria, a matriarca do clã e Nastassja. Diálogos de uma mulher, que era farmacêutica e decidiu voltar ao modo de vida dos seus pais, voltar para junto dos pastores de renas.
Uma mulher que se tornou líder, que transformou as regras, que na ausência de xamãs, passou ela a sonhar e a dançar (os seus filhos ficam constrangidos quando o faz). Uma mulher que alia o tradicional a tudo o que viveu e aprendeu no “outro mundo”.
2º) Destaco os momentos de percepção, desde da presença de filmes de Hollywood, de rádios, de brinquedos, no meio da kamatcheca russa (centro da Sibéria) e ao lado uma raposa a ser esfolada, uma dança tradicional para com os mortos, ou uma refeição de rena crua (e como dizia um dos filhos de Daria para a câmara rindo “agora as pessoas vão chocar-se”).
3º) Por fim destaco um ato político, que o filme não deixou de registar. Tanto ao nível tradicional, como ao nível das instituições políticas russas. Falo da pertenças de terra e de animais, debatidas em várias conversas, sempre com forte presença do estado. Até às eleições nacionais, onde um helicóptero do governo, leva a urna de voto aos povos tradicionais e fotografa (para campanha política), o ato em si.
Um filme que desconstrói as narrativas mitológicas da má qualidade, dos filmes etnográficos, onde se alia um olhar da ciência à produção de arte.
Link da recensão Acreditar nas Feras, Antropia: Antropia.UC (@antropia_uc) • fotos e vídeos do Instagram
Link da recensão Acreditar nas Feras, Etnográfica: https://doi.org/10.4000/11xjk
Link da Culturgest: Acreditar nas Feras | Culturgest Mike Magidson e Nastassja Martin | Culturgest
OpenEdition sugere que esta publicação seja citada da seguinte forma:
diogo (21 de Setembro de 2024). Conferência Antropóloga Nastassja Martin – Metodologias do Sonho. Antropia. Recuperado em 14 de Novembro de 2024 de https://doi.org/10.58079/12c3j